
Quando o discurso cai por terra: o uso seletivo do dinheiro público
Os bolsonaristas transformaram a Lei Rouanet em um espantalho político. Durante anos, repetiram à exaustão que a política de fomento à cultura seria um “caixa-preta”, um privilégio para artistas “de esquerda” e um símbolo do suposto aparelhamento ideológico do Estado. A crítica, quase sempre rasa, serviu mais como instrumento de mobilização eleitoral do que como debate sério sobre políticas públicas.
O problema começa quando o discurso não resiste aos fatos.
Na hora de utilizar dinheiro público para financiar produções que exaltam o capitão ou difundem valores caros à extrema direita, o pudor desaparece. Não há parcimônia, não há constrangimento, não há autocrítica. O que antes era “mamata” passa a ser “investimento”; o que era “ideologia” vira “cultura de verdade”.
O caso do deputado federal Mário Frias é exemplar — e simbólico. Ex-ator da Rede Globo, Frias tornou-se um dos mais ruidosos críticos da Lei Rouanet quando assumiu o figurino ideológico do bolsonarismo. Atacou artistas, demonizou políticas culturais e ajudou a construir a narrativa de que qualquer incentivo estatal à cultura seria imoral.
No entanto, agora aparece como roteirista de um filme inspirado na trajetória de Jair Bolsonaro, enquanto, na condição de parlamentar, direciona R$ 2 milhões em emendas para uma ONG ligada à produtora responsável pelo longa-metragem. O dinheiro não saiu da Lei Rouanet, é verdade — mas saiu do mesmo lugar: o bolso do contribuinte.
A contradição é gritante. Se o problema fosse realmente o uso de recursos públicos para fins culturais, a crítica seria coerente e abrangente. Mas não é. O incômodo nunca foi com o dinheiro público; foi com quem o utilizava e com as ideias que eram expressas.
Quando a cultura exalta a extrema direita, vira “resgate de valores”. Quando questiona o poder, vira “doutrinação”. Esse duplo padrão revela que a cruzada contra a Lei Rouanet sempre foi menos sobre responsabilidade fiscal e mais sobre controle narrativo.
O episódio escancara uma prática comum no bolsonarismo: demonizar o Estado quando ele serve ao outro e apropriá-lo sem cerimônia quando atende aos seus próprios interesses. Não se trata de discutir a legalidade formal das emendas, mas de expor a incoerência moral e política de quem se apresenta como paladino da moralidade pública.
No fim das contas, a régua ética muda conforme o roteiro. E, nesse filme, o discurso anticorrupção e antiprivilégio não passa de ficção mal escrita.
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